quinta-feira, 19 de junho de 2014

Aclarações.

Na reforma do Código de Processo Civil de 2013, o Governo eliminou o incidente de aclaração, precisamente porque ter considerado que se tratava de uma forma de prolongamento artificial da lide, já que na esmagadora maiora dos casos as obscuridades e ambiguidades da decisão reclamada seriam ficcionadas e inexistentes. Apesar disso o Governo resolveu pedir à Assembleia da República que suscitasse um incidente de aclaração, invocando normas do CPC que já nada tinham a ver com esse instituto. A Assembleia da República, que tinha percebido tão bem o acórdão que repôs imediatamente os cortes aos seus deputados e funcionários, deu razão ao Governo e lá formulou o pedido de aclaração. Para isso, ao contrário do Governo, meteu na gaveta o CPC que aprovou, invocando antes como fundamento do pedido de aclaração, imagine-se "os princípios que regem o processo de constitucionalidade, maxime o processo de fiscalização abstrata sucessiva". 

O Tribunal Constitucional, que gosta muito de decidir com base em princípios e muito pouco com base em normas, deu-lhe razão e considerou admissível esse pedido, face "aos princípios gerais do processo aplicáveis a decisões insuscetíveis de recurso, tornando-se irrelevante, face aos interesses subjacentes à intervenção do Tribunal nessa forma de processo, que o novo Código de Processo Civil tenha deixado de contemplar o pedido de aclaração que constava do antigo artigo 669.º, n.º 1". No fundo, estamos perante uma forma de decidir semelhante às muitas com que o Tribunal Constitucional sucessivamente nos tem brindado. Não interessa nada que a Constituição proíba expressamente determinadas medidas legislativas, que estas podem sempre ser admitidas com base em princípios gerais. A continuarmos nesta senda, a Constituição não passará em breve de um texto vazio, sobrando apenas as sucessivas decisões jurisprudenciais, às vezes contraditórias, do Tribunal Constitucional.

Tudo isto para admitir um pedido de aclaração que afinal acaba por desatender, por considerar que o seu acórdão afinal é clarinho, clarinho, e que não cabe "ao Tribunal Constitucional esclarecer outros órgãos de soberania sobre os termos em que estes devem exercer as suas competências no plano administrativo ou legislativo". O Governo, no entanto, considerou-se altamente esclarecido, e o Ministro Poiares Maduro declarou que, em consequência do esclarecimento da decisão do Tribunal Constitucional, deixará por pagar os cortes aos trabalhadores que já tivessem recebido os subsídios. Tal é profundamente inconstitucional, por violação do princípio a trabalho igual salário igual, previsto no art. 59º, nº1, a) da Constituição, mas parece que para o Governo a constituição já não vigora, havendo apenas que atender aos acórdãos e aclarações do Tribunal Constitucional.

O Tribunal Constitucional é que ficou furioso com o entendimento que o Governo está a fazer da sua aclaração. Comunicou por isso que "em face de afirmações públicas quanto às implicações da decisão do Tribunal Constitucional sobre o pedido de aclaração do Acórdão n.º 413/2014, o Tribunal lembra que tal pedido foi indeferido, pelo que desta decisão não pode ser retirada qualquer outra ilação." É evidente que ninguém pode ficar esclarecido com aquilo que o Tribunal Constitucional não quis esclarecer.

A verdade é que o Tribunal Constitucional é em grande parte responsável por esta situação. Tivesse o Tribunal Constitucional desde o início tido uma jurisprudência firme no sentido óbvio de que a constituição não permite o corte de salários e pensões e nunca esta situação teria sido criada. E depois, quando finalmente interditou esses cortes, bastava-lhe não ter limitado os efeitos da sua decisão para que nunca esta discriminação ocorresse. Tal não desculpa o escandaloso comportamento do Governo na discriminação aos funcionários públicos que manifestamente odeia. Mas em virtude desse ódio manifesto, cabia ao Tribunal Constitucional proteger desde o início essa categoria de cidadãos, o que só recentemente começou a acontecer. Infelizmente, muito tarde.

2 comentários:

Francisco Bruto da Costa disse...

Inteiramente de acordo.
O TC é o principal responsável pela situação criada, sabedor da "peça" com que estava a lidar.
Só espero que esta hstorieta produza os seus efeitos e qe as futuras decisões de inconstitucionalidade levem os seus efeitos às últimas consequências.

sempre a aprender disse...

Caro Senhor Professor, recorde a todos qual é a norma da Constituição que proíbe o corte de salários e de pensões, para que todos esses ignorantes fiquem a saber.