sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A irrelevância da Constituição.

Quando se fizer a história da crise económica, financeira, e sobretudo moral, que o País está a atravessar, não se deixará de salientar que a primeira vítima de tudo o que se passou foi a nossa Constituição, escandalosamente violada vezes sem conta, com a complacência do Tribunal Constitucional e também dos nossos constitucionalistas, que trocam facilmente as normas constitucionais pela retórica vazia de um discurso sobre a crise.

Só comparo esta situação com o célebre discurso de Passos Manuel, após a Revolução Setembrista: "Senhor Presidente exercemos a ditadura; e eu confesso francamente que violamos um sem número de artigos da Constituição de 22 (…). Somos filhos da revolução e a revolução pode destruir trono, altar, leis e Constituição". Substitua-se nesta citação a palavra "revolução" por "crise financeira" e ver-se-á que não estamos longe da mesma realidade.

Depois de o Tribunal Constitucional ter legitimado a escandalosa retroactividade da lei fiscal, contra o que a Constituição expressamente determina, já por mim aqui criticado, surgem agora constitucionalistas a considerar que a ainda mais escandalosa redução de salários na função pública só será inconstitucional se for "definitiva", porque se for "provisória" já não haverá problema. Esta peregrina tese veio a ser defendida por Marcelo Rebelo de Sousa no seu comentário na TVI e agora vem a ser seguida por Jorge Bacelar Gouveia. Parece, portanto, que a Constituição livremente permite uma redução de salários por um ou vários anos, só havendo problema constitucional se a redução for "para sempre", como decretou o Ministro das Finanças.

Assim, se os visados pela "provisória" redução de salários tiverem o azar de entrar em insolvência ou mesmo morrerem de fome durante esse ano, nunca haverá qualquer problema constitucional, uma vez que a "provisoriedade" da situação tudo resolve. Grave para a Constituição é que se tenha dito que a redução era definitiva. Naturalmente que o Tribunal Constitucional não deixará de ficar satisfeito e fazer pleno uso desta doutrina constitucional.

Aliás, já o fez anteriormente no seu tristemente célebre Acórdão 11/83, que legitimou o imposto retroactivo lançado pelo Bloco Central, argumentando com o carácter "extraordinário" "único" e "excepcional" desse imposto. Na altura, em voto de vencido, Vital Moreira escreveu que todas as inconstitucionalidades "começam por ser extraordinárias, excepcionais e únicas, e não consta que qualquer órgão de direcção política em qualquer Estado alguma vez tenha deixado de invocar o carácter extraordinário e excepcional para justificar medidas inconstitucionais. Mais: essas invocação é muitas vezes indício seguro da consciência da ilegitimidade constitucional das medidas em causa".

Nesta época de crise económica, a Constituição deveria ser o último reduto de defesa dos cidadãos contra a voracidade do Estado. Infelizmente, está demonstrado que a crise financeira pode mais que o texto da Constituição, e que os nossos constitucionalistas preferem maioritariamente alinhar com o Estado no seu ataque aos direitos dos cidadãos. Os tempos estão maus para quem ainda acredita na "luta pelo Direito", de que falava Jhering.

Nenhum comentário: